domingo, 17 de outubro de 2010

#12

Coisa crua gotejando rubra
putrefato néctar de flor murcha
chorando grito de monstro-circo
armado sem estrela-picadeiro
só leão fera macaco tigre.

Sob tenda verde e estreita
criatura de vida latente
(rubro mel do fim à espreita!)
dum sepulcro e doutro já carente.

Nasceu.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

#11

À porta a noite fria
na mais vil hora do dia
novamente, ai, minh’ainda
cálida alva Sofia

Às vestes de era finda
viva de sepulcro vinda
cálida alva Sofia
diga que és minh’ainda

À deriva da agonia
cálida alva Sofia
minh’alma está ainda
presa da tua utopia

À cálida alva Sofia
todo eu coisa ignota
suplico minh’alforria:
quebra destrói esta roda!

domingo, 10 de outubro de 2010

#10

Nestas ruas ancestrais

de pedras mudas, quietas

de antigos silêncios sepulcrais,

duras maciças repletas

de contidas vozes abissais

repousam porém ambulantes,

minhas pernas.


Igualmente duras quietas

feito pedras e – não te espantes!

ainda que membros inferiores,

sentimentais.


Contudo pernas e dores

sobre pedras (as duas)

dispostas em lama nuas

após furtadas sem pudores

à pedreiras longínquas feito luas

para os que sobre pedras, com horrores,

rumam.


E minhas pernas de um lado cada

como duas cordas contraídas ora esticadas

vão da pedra na lama até em cima,

ao nada.

...

terça-feira, 1 de junho de 2010

#8

Vede que somos semelhantes,
caríssimo.
Da morte viveis
e da morte eu sobrevivo.
Crede no que digo, amigo.
Sois coveiro e eu sou poeta;
lidais com pás e eu com penas;
enterrais mortos sob terra;
enterro vivos sobre poemas.
Teço poesia; este feto da alma.
Adormeceis cadáveres; último verso.
Entrementes somos artífices
do mesmo reverso.

Agora que sabeis que somos iguais
não mais temei este holograma
abstrato que jaz levantado de seu
corpo putrefato, resultado da presteza
e eficiência de vosso trabalho,
companheiro.

Ora, coveiro, poeta do verso da poesia,
não penseis que aqui estou para lamentar-me.
Apenas quero contar-vos a estória
por trás desta glória sepulcral.

Foi numa sístole, breve e comum,
não numa extrassístole – aquelas bolinhas de sabão
que me estouravam no peito – mas numa sístole
simples, comum e breve, que meu coração calou-se,
súbito, sem motivo mas com alguma razão,
para não mais contrair-se.
Por todo meu corpo jorrou o derradeiro sopro
de vida que não tardou a transformar-se
no frio mais gélido que qualquer corpo,
deste mundo ou do outro, poderia sentir.
Assustei-me, confesso. Pois pensei
se tratar do tédio e seu regresso.
Desejei estar morto.
E morto estava.
Porém era apenas a morte se apoderando
do que sempre fora seu por dever e direito;
a vida: poesia.

Sei que não vos espantais com o que digo,
poeta contíguo, como coveiro que sois
bem sabeis que a morte é muito menos
que um minuto tedioso.

Libertei-me da inveja, do amor,
do ódio e da espera pela morte.
Já não amo a mulher que amava
e por quem me entediava:
morria.

Hoje morro de escrever poemas.
E os declamo para esta terra,
não a que vós pisais e jogastes soberano
sobre mim, mas a que me cobre
com aplausos de flor e minhocas.
Já não há vida a impedir-me o verso
nem apostasia capaz de ressuscitar-me
deste leito eterno de poesia.

Vistes que não me lamentei da sorte,
coveiro, poeta do soneto de sete palmos,
como vos disse que não faria,
apenas confessei-vos esta glória
de ser agora poeta pleno
de vida e de morte.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

#7

Berram vitrines vítreas
nos olhos de menina de plástico.
Gritos de couro, jeans, ouro: explodem
em fúria
férrea
contra o ouro do outro tolo
comprado a preço de miséria
de lata
catada por mãos de menina esquálida,
preta mas pálida, como carne de cadáver
que jaz atropelado pelo carro
do ano em que morreram dois milhões
de guerra, amor, suicídio e de fome
na África mãe de uma nação
que some
nas mãos de outra nação – de merda! – que come
tudo;
lata, couro, jeans, carro, menina, carne, ouro,
merda,
o Mundo...
não te quer bem
então não queira o mundo, meu bem.

domingo, 30 de maio de 2010

#6

Uma batida seca, aguda,
repentina, ensurdeceu-me os ouvidos.
E outras batidas igualmente secas, agudas,
repentinas, seguiram-se a primeira e continuaram
a ensurdecer-me os ouvidos.
Contudo não fiquei surdo.
Ouvi-as todas: secas, agudas, repentinas
batidas a ensurdecerem-me os ouvidos.
Porém ouvi-as todas; secas, agudas, repentinas:
não ficara surdo.

Aquilo era tortura.

Estava eu numa câmara de tortura.
Arrancado de minha cama alva.
Transportado para uma câmara rubra de tortura.

Rubra. Inviolável. Quente mas não cálida
câmara de tortura rubra com paredes movediças,
erguidas sobre chão convulsivo, a esmagar-me
os olhos de vermelho. Paredes rubras, movediças,
erguidas sobre chão convulsivo, a esmagar-me
os olhos de vermelho. Rubras paredes, fronteiras
rubras da tortura, a esmagar-me os olhos.
Desespero em tons de vermelho, convulsivo.
E meus olhos só viam vermelho, a esmagarem-nos;
claustrofóbicos.

Inviolável câmara de tortura rubra quente
jorrando magma rubro quente mas não cálido
a queimar-me o rosto de vermelho.
A manchar-me inteiro de vermelho.
A desfigurar-me de desespero.
Magma rubro quente mas não cálido
a queimar-me o rosto de desespero,
o nariz, a boca, os pés, o cabelo,
de vermelho.
Era tortura a queimar-me de todo jeito.
Magma rubro quente mas não cálido
por sobre onde boiavam desesperos
pecados e pecadores, sujos, queimados
de vermelho.

Inviolável câmara de tortura rubra,
quente mas não cálida produzindo
tormentas a sufocar-me os pulmões.
Tormentas de angústia, remorsos,
desejos, desesperos a sufocar-me os pulmões.
Rubras tormentas, instrumentos vermelhos,
de tortura a sufocar-me os pulmões, inundando-os
de vermelho. Era tortura.

Uma voz rubra quente mas não cálida
voz de tortura perguntou-me
– quem és tu?
Respondi, sem saber o que dizer, vermelho,
que era poeta.

Fui expulso da câmara de tortura rubra
quente mas não cálida.

E ainda hoje não sei se estive no inferno
ou num coração humano.